José Geraldo de Souza Junior2
No Brasil, hoje, a experiência de luta pela construção da cidadania se expressa como reivindicação de direitos e liberdades básicos e de instrumentos de organização, representação e participação nas estruturas econômico-social e política da sociedade.
Os cenários mais freqüentes deste processo têm sido armados nas periferias das cidades e nas áreas rurais onde vêm ocorrendo inúmeras manifestações de grupos e classes populares empenhados em afirmar o seu direito de cidadania e em organizar formas concretas de defesa e de promoção dos seus interesses.
No campo, contra o processo de concentração da terra, a organização consciente orienta a energia de movimentos coletivos de resistência às expulsões arbitrárias, de reivindicação por assentamentos alternativos e pela reforma agrária. O que caracteriza a ação destes movimentos, sua eficiência de articulação de soluções é a convicção de que a sua ação encontra apoio num direito que não coincide necessariamente com a legalidade oficial vigente.
Nas áreas urbanas ocorre fenômeno idêntico. As migrações forçadas conduzem às cidades contingentes populacionais de forma desordenada e que agravam a qualidade da vida da já depauperada condição de existência da força de trabalho urbana.
Também aí surgem formas novas de experimentar a vivência da própria exclusão. Organizam-se associações de moradores, comissões específicas, manifestações e estratégias de luta orientadas para reivindicações autônomas fundadas na convicção de que obedecem à manifestação de um legítimo direito, embora não reconhecido pelas leis.
A reivindicação do direito de morar emerge da mobilização e da organização das ações comunitárias em movimentos de resistência contra a ação repressiva configurada na derrubada de “barracos”.
A representação deste direito somente é possível no contexto paradigmático de formulações culturais e contraculturais. No terreno da teoria do direito, por exemplo, as circunstâncias que colocam tal possibilidade derivam da análise do pluralismo jurídico que admite no espaço social a existência de outros direitos que não os exclusivamente postos pela ação do Estado.
Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, examinou bem essa situação, aliás, a partir de um estudo sociológico sobre as estruturas jurídicas internas de uma favela do Rio de Janeiro, à qual deu o nome fictício de “Pasárgada”, com o objetivo de analisar em profundidade uma situação de pluralismo jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações entre Estado e direito na sociedade capitalista.
Segundo Boaventura de Souza Santos existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram, oficialmente ou não, mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, num período de transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como nas favelas, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social – neste caso, a habitação.
Num texto cuja base é a tese de doutoramento apresentada na Universidade de Yale, em 1973, com o título Law Against Law: Legal Reasoning in Pasargada Law, o autor pretende demonstrar, e a meu ver com inteira razão, que uma “favela é um pedaço territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial” e que “esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídico do Estado”. No caso específico de Pasárgada – completa o autor – pode detectar-se a vigência não-oficial e precária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrentes da luta pela habitação.”
Fundamentalmente, em face de uma situação que opõe duas pretensões jurídicas antitéticas, a legalidade alternativa da favela se constitui sob o pressuposto de que é impossível às classes trabalhadoras, nas sociedades capitalistas periféricas, o acesso à propriedade imobiliária, já que seus direitos sacrificados na espoliação das comunidades marginais são declarados ilegais pelo sistema oficial.
Neste passo, mesmo nas situações descritas no exemplo, embora a constituição de um direito de morar resulte de condições intraclassistas, não deixa de ser também expressão de um conflito interclassista muito mais vasto, reflexo de contradições estruturais profundas e potenciais. Assim, a consciência da posição de inferioridade social organiza as condições de luta e de defesa de seus direitos sacrificados, desenvolvendo estratégias que articulam desde a recusa e a resistência, à desobediência civil e à constituição de um poder dual ainda complementário ou paralelo, mas conforme salienta Boaventura de Souza Santos, que é “a pré-história de um poder dual confrontacional”.
A reivindicação de direitos, como o direito de morar, nestas condições, orienta a construção social da cidadania, na medida em que as classes e grupos espoliados e oprimidos definem a sua representação, a sua participação e instauram na sociedade a dimensão geral da liberdade como expressão da liberdade fundamental de todo ser humano.
1 O presente artigo faz parte do livro O direito achado na rua, fruto da contribuição de vários autores, de 1990, e editado pela Editora Universidade de Brasília.
2 Professor do Departamento de Direito; Coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos – NEP/UnB. Atual reitor da Universidade de Brasília.
autora: Paula Teixeira